Fizera uma manhã ensolarada naquele sábado, e como de costume na cidade litorânea de Maceió, familiares e amigos aproveitavam a maré baixa para se banhar na praia e atualizar as fotos das redes sociais. Mas Raquel até então dormia tranquilamente em seu quarto, completamente vedado por blackout nas janelas, simulando a escuridão noturna.
Ela usava uma camisola rosa, bastante confortável, mas não muito atraente aos olhos, sendo excessivamente longa e folgada em seu corpo, composta por uma estampa dúbia de cores desbotadas. Ela não se importava com a ausência de beleza desta, e inclusive dentre as demais que tinha, era a sua preferida.
Contudo, por mais que o traje fosse de gosto duvidoso, ainda era possível encontrar beleza naquela mulher deitada sozinha na cama de casal, que de bruços abraçava o travesseiro nas coxas, fazendo os quadris se projetarem em todo aquele tecido sobreposto ao seu corpo.
Em torno das 15 horas levantou-se desnorteada, e cambaleando dirigiu-se à janela. Abriu-a com os olhos ainda fechados para se acostumar-se com a claridade. Perguntou para sua assistente virtual que horas eram, e confirmou em voz alta sua hipótese:
- Dormi demais.
Em meio à frase culpou-se pelo seu cansaço acumulado. Justamente por ser sábado, ela gostaria de ter aproveitado mais o dia, lido um bom livro, ou até ter ido se bronzear, já que seu trabalho valoriza a boa aparência. Aliás, qual trabalho não valoriza?
Mas era um círculo vicioso e que já se repetia há meses, pois a sua rotina noturna aliada à dupla personalidade que ela precisava manter desregulava bastante seu relógio biológico. Em dias de semana ela precisava por vezes dormir durante todo o período da tarde para conseguir manter-se de pé, isso sem contar o sono incontrolável que sentia aos domingos, onde era costumeiro nem sair da cama.
Em contrapartida, o sábado é o dia de mais movimento em sua rotina, sendo inclusive o mais rentável para Raquel, que faz questão de se arrumar desde cedo nestes dias para estar com uma aparência impecável.
Se posicionando à frente do espelho do banheiro, deu uma boa olhada no seu rosto à procura de olheiras, enquanto derrubara a alça da desagradável camisola, que fora deslizando vagarosamente pelo seu corpo em busca do chão do banheiro, revelando que não era necessário muito esforço para Raquel ser agradável aos olhares.
O espelho refletia seus olhos castanhos, ainda entreabertos, permeando cada centímetro de seu corpo, à procura de alguma imperfeição. Apertou delicadamente seus seios e rotou seu corpo para dar uma boa olhada nas nádegas, dando uma tapa de leve para checar a firmeza. Tudo nos conformes.
O banho é um momento de meditação para Raquel. Quase que um mantra, ela vai massageando seus cabelos e relaxando seu corpo até alcançar um estado de espírito sereno e inabalável de paz.
- Acordou tarde, amor. – Disse seu marido dando espiadelas na figura voluptuosa de Raquel, que passava sabonete em suas pernas torneadas. Raquel olhou bem para ele, deu um sorriso de canto e voltou para o seu mantra. O marido por sua vez, ficou plantado alguns instantes na porta esperando algo a mais por parte dela, mas acabou se conformando e se dirigiu à sala de estar, se posicionando de uma forma que fosse possível ver quando ela saísse. E assim que ela terminou o banho, ele fez um gesto para que ela se sentasse junto a ele na mesa de jantar.
Raquel continuou em seu voto de silêncio, apenas concordando com a cabeça, e foi ao quarto se arrumar. Colocou a lingerie rendada branca que seu marido lhe dera no ultimo aniversário de namoro, até então a mais bonita que tinha, e por cima uma calça jeans preta junto com uma camiseta branca de botão, um salto alto, um smartwatch e um brinco de argola cor de ouro, que assentava bem com seus cabelos castanhos. Após isso, caminhou em direção à cozinha para preparar uma comida, enquanto ouvia seu marido.
Como previsto por Raquel, o tópico a ser abordado era sua rotina de trabalho. Sempre muito atencioso, o marido ressaltou os problemas que o esgotamento físico poderia causar a ela, e evidenciando a necessidade de uma mudança imediata, todavia sem obrigá-la a deixar o emprego ou algo parecido. Mas essa pressão por parte dele nem era necessária, pois já existia um conflito muito grande no interior dela em relação a isto.
Os dois eram pombinhos apaixonados, e entre eles nunca faltou amor. Recém-casados no cartório, planejavam se firmar também na igreja, com tudo que tinham direito: vestido, festa, comes, bebes, música, e é claro, lua-de-mel; Mas lhes faltava dinheiro, situação que só foi se agravando com o passar do tempo, pois as prestações da casa própria e as contas tomavam quase que todo o salário dele.
Já Raquel trabalhava como contadora, profissão que ela sempre teve inclinação e amor para fazer, mas que talvez pelos seus vinte e quatro anos e aparência ainda jovem, ou talvez por infortúnio do destino, até então só tinha arrumado bicos de meio período.
Até que um dia destes recebeu uma mensagem no LinkedIn de uma senhora de aparência imponente, que se apresentou como empresária e a convidou para conhecer seu estabelecimento, perguntando se ela ainda estava à procura de emprego. Raquel prontamente se interessou, marcaram um café, conversaram de forma bastante profissional, e logo simpatizou com a senhora pela sua personalidade similar, que apesar de estar na faixa dos cinquenta, aparentava ser bem mais jovem em sua persona, carregada de ambição e aliada com a justiça e a ética.
A conversa foi se tornando mais descontraída, e a sintonia já estava solidificada. O interesse de ambas já era tão intenso que foram juntas naquela mesma tarde ao local do possível trabalho. Até então Raquel não imaginara que o estabelecimento da senhora era um clube voltado para entretenimento do público masculino, e o choque foi imediato.
Logo houve rejeição por parte de Raquel, mas a empresária logo a convenceu, pois estava precisando de alguém que ficasse realmente na gestão, por trás de tudo, e que no menor sinal de desconforto ela não deveria hesitar em sinalizá-la.
- Raquel, eu te juro que nunca vão cruzar a linha, os clientes valorizam a boa aparência, mas deixo bem claro para todos que entram ali, em contrato inclusive, que existem limites que não serão quebrados em nenhuma hipótese. - Disse a empresária. – Caso aconteça, pode se aposentar, pois a indenização vai te dar dinheiro pra vida inteira. Nossa casa é muito seletiva.
Ainda relutante, mas confiando no profissionalismo mostrado e no laço social que tinha sido formado ali, Raquel aceitou, e o trabalho se mostrou exatamente como a empresária a comunicou. Durante o trabalho não existia necessidade de sair da sua sala, que possuía regalias como banheiro e frigobar particulares, além de um isolamento acústico excelente, onde a janela espessa era similar àquelas de estúdios musicais.
Pelo vidro de dupla camada era possível ver tudo o que acontecia do outro lado do recinto, e em contrapartida bloqueava completamente a estridente música que invadia os ouvidos das dançarinas e dos homens que ali ficavam. Sempre ficava sozinha em sua sala, com exceção das raras vezes que a empresária visitava a casa.
Com o tempo ela foi se desarmando, e conheceu as mulheres que ali trabalhavam. Pôde enxergar pessoas onde antes ela só via pedaços de carne. Ela entendia o problema da prostituição, mas passou a respeitar a necessidade de cada uma sem julgamentos.
E até então ela estava muito confortável com o trabalho, pois era na sua área, pagava o justo e respeitavam seu espaço, no máximo uns olhares aqui ou ali através da janela da sala dela, mas nada muito mais invasivo ou diferente de uma casa de show qualquer.
Mas o justo ainda não era suficiente para o sonho do casamento, que ficou ainda mais distante com a demissão do marido, a três meses atrás, do emprego que exercia. Ele não conseguiu arrumar outro, e nem mostrou dedicação a isto, focando quase que inteiramente em passar no concurso de policial federal. Mas ainda era um sonho distante e incerto.
Isso mexia com Raquel. Por um lado ela queria apoiar seu marido, já que com seu emprego atual e os bicos dava para viver. Contudo ela estava se desgastando demais sustentando algo que deveria ser provisório, e sua saúde estava cobrando o preço.
Contudo, tudo isto era segredo, pois achou que o marido não entenderia e preferiu mentir. Como explicar para o marido que o emprego de recepcionista noturna do hotel cinco estrelas era na verdade de contadora de um clube de strip?
- Vamos dar um jeito. – Ele dizia a confortando, mas as palavras do marido deixaram-na ainda mais incomodada. Meio nauseada da conversa, engoliu rapidamente o pão sem gosto que havia preparado e checou seu relógio, que ainda apontava folga em relação ao horário de batente estipulado. Mesmo assim, ela se despediu do marido como uma fugitiva, e se dirigiu ao trabalho apressadamente.
Chegando lá, ainda não tinha ninguém. Dirigiu-se à sua sala, tomou alguns tragos até a primeira dançarina chegar, e ali ficou em sua mesa até terminar tudo o que deveria ser feito. Ainda estava cedo para voltar para casa. O ambiente de trabalho dela permitia a ingestão de bebidas alcoólicas, mas Raquel sempre teve vergonha de fazer isso durante o expediente, além do receio de exagerar na dose e chegar bêbada em seu lar.
Pela janela olhou que o movimento estava bom. Por um momento teve inveja das mulheres, vendo todo aquele dinheiro sendo dado a elas. Apesar do valor justo que recebia, não era nem um quarto do que uma dançarina popular recebia em uma boa noite. Examinou bem os sorrisos das dançarinas, e pela convivência já conseguia distinguir os verdadeiros dos falsos, diferentemente dos homens, que pareciam extasiados sem exceções. No geral, parecia que todos estavam se divertindo.
No ponto de vista de Raquel, tudo era um teatro silencioso. Graças ao isolamento acústico, não existia um resquício de música, grito, urro ou aplauso. E ali ela se entristeceu. Sentiu-se solitária diante da situação que a circundava, se limitando ao papel de espectadora. Recordou-se que amanhã era domingo e resolveu beber um pouco mais. Que mal faria?
Lembrou-se do marido a desejando e da sua indiferença, e se sentiu culpada por não ter lhe dado atenção. Já visivelmente alterada, o mundo que via através da sua janela já lhe parecia encantador. Decidiu em uma espécie de epifania sair da sua sala. “Sim! Que bom me trás ficar enclausurada aqui até o final do expediente? O ambiente aqui é bem respeitoso com as garotas, nada de ruim irá acontecer, ficarei atrás do bar só observando”, pensou.
Respirou bem fundo, como quem está prestes a prender a respiração, segurou a maçaneta deu uma última olhada pela janela à prova de som. Viu as mulheres sendo cobiçadas por aqueles homens e se chocou quando identificou seu marido entre a multidão. Não pôde acreditar, e em um lapso de sobriedade, mergulhou para baixo da janela escondendo seu rosto.
Mesmo com a visão alterada pelo álcool conseguiu se certificar de que realmente era seu marido. Sem se levantar para não ser vista, fora engatinhando em direção ao banheiro. Nem precisou se trancar, sabia que ninguém viria ao seu encontro, muito menos ouviria o choro descompassado que ecoava na sala isolada acusticamente.